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  Estas cartas de amor, autógrafos de Florbela Espanca e conservadas inéditas até dezembro de 2008, foram escritas entre 1920 e 1925 para António Marques Guimarães, que tornar-se-ia o seu segundo marido.
  O perfil de Guimarães é, aliás, muito diverso daquele do primeiro marido de Florbela, professor e seu ex-colega de liceu, e do derradeiro, médico. Profissão esta que, de resto, parece até legitimar uma generosa oferta aquando da exumação do corpo da esposa.
  Saiba o leitor que 34 anos após o suicídio de Florbela, o médico Mário Lage faculta, aos desconsolados simpatizantes dela, que retirasse, dos seus restos mortais, as “lembrancinhas” que julgassem convenientes... numa (digamos) compadecida divisão comunitária de Florbela, numa espécie de comunhão do Mito: num civilizado (e imperdoável) ritual moderno de consentido canibalismo.
  Teriam tais pessoas a esperança de que os souvenirs do corpo da poetisa lhes despertasse, por analogia mágica, o estro?!
  Cada um dos dois maridos de Florbela (o primeiro e o último) tirou, à sua maneira, alguma coisa dela. Alberto Moutinho usa, à revelia da escritora, todo o montante dos bens comuns para um negócio comercial marítimo que literalmente afunda, deixando Florbela sem vintém à época em que conhece Guimarães. Este, que era alferes da Guarda Nacional Republicana, e a quem calhou todo o acervo literário e pessoal que a poetisa produzira até o momento em que o abandona às pressas – jamais se valeu disso. Ajudou a fundar, muito tempo depois da morte de Florbela, uma empresa que lhe propiciaria estar para sempre ao lado dela, na continuidade de um hábito adotado desde a separação (e valioso para a posteridade): o de colecionar os recortes da imprensa sobre a ex-mulher.
  Assim, a publicação desta epistolografia (as únicas cartas de amor do punho de Florbela Espanca) resulta de um tipo de generosidade que nada tem a ver com aquela do dr. Lage. E atesta a faísca que soldou (e eletrizou) durante cerca de cinco anos essas duas pessoas: o sexo. O teor da paixão que os une conserva a mesma temperatura tanto na “frieza” quanto nos choques que distanciarão o casal, incluindo, para além da intempestiva saída de cena de Florbela, o feitiço de amor que um soneto dela descarrega sobre Guimarães, e que o atinge por inteiro (e pela vida afora!) com seus sortilégios.
  Transcorrida durante o período de completa turbulência política e social da Primeira República Portuguesa, essas cartas atestam uma Florbela atenta à vida pública, muito bem informada e com uma consciência política aguda – ao contrário da alienação que lhe atribuíram sempre. De maneira que esta correspondência revela uma Florbela inesperada. Aliás, não apenas uma, mas diversas e várias: a Penélope, a estrategista, a grávida, a espirituosa, a destemida, a somatizadora, a capoeirista, a burguesa. E todas elas se enfeixam numa única mulher, saudosa do corpo do amante e que, sem constrangimento, lhe confessa o desejo – atrevimento que ultrapassa o limite puramente biográfico e que penetra com intensidade os seus poemas.
  Só isso já a desloca do seu tempo, desirmanando-a de suas colegas de ofício. Mas há ainda outros lances que a trazem para bem mais perto da nossa contemporaneidade. Como uma precursora mulher moderna (pós-moderna?), Florbela tem a convicção de que somos animais históricos, e que é o tempo, com as mudanças que acarreta, aquilo que rege o amor, visto que este (assim como tudo o que existe) nasce, vive e morre...
  Talvez por isso, para manter-se em dia com as transmutações impostas pela História, ela tanto se esforce por amar, amar, perdidamente!
  Também para ela, o amor é “infinito enquanto dura” - como diria depois Vinicius. Mas Florbela é ainda mais peremptória que o nosso Poeta, quando assegura libertariamente: Quem disser que pode amar alguém / Durante a vida inteira é porque mente!
  É esta a inefável Florbela que as presentes cartas entremostram. Esta que, já em 1922, e como se anunciasse uma nova era, inaugurava uma experiência que hoje em dia tornou-se um truísmo muito real, a contrapelo do... eterno romantismo que sempre se imputou a ela: Amar-te a vida inteira eu não podia. / A gente esquece sempre o bem dum dia. / Que queres, ó meu Amor, se é isso a vida?!
Maria Lúcia Dal Farra